terça-feira, 31 de outubro de 2017

QUATRO DESTAQUES DA MOSTRA 41ª.

   
Antonio Carlos Egypto


A separação de casais com filhos não precisa ser complicada ou traumática, como a que acontece no filme francês CUSTÓDIA, de Xavier Legrand, um dos destaques da 41ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.  Muitas vezes, o convívio das crianças com as casas e, eventualmente, famílias de pais e mães separados, pode até enriquecer ou diversificar as experiências delas, se tudo se faz de forma pacífica e civilizada. Pode até persistir um vínculo afetivo bom entre os cônjuges que decidiram, cada um, levar a sua vida em outros termos.
Mas quando a separação é litigiosa, resulta em brigas, violência e disputa judicial da guarda e do direito de conviver com os filhos, quem acaba suportando a maior e mais pesada carga são justamente as crianças. Para mostrar isso com clareza e intensidade dramática, CUSTÓDIA coloca em foco o menino que vai a contragosto conviver com o pai, volta para a casa da mãe, fica no meio do conflito, passando recados de um a outro, que não querem se ver. E por aí vai. 
A narrativa é firme, bem construída, o desempenho do garoto é espetacular, nos faz viver o que ele estaria experimentando.  A questão de gênero é bem mostrada.
A solução dramática final parece inevitável, embora esteja aqui carregada nas tintas.  Mas a sequência é muito boa, extremamente tensa, com um clímax emocionante.  O diretor demonstra um talento incrível já no seu primeiro longa-metragem. 


CUSTÓDIA


Fui ver GRÃO, o filme turco dirigido por Semilh Kaplanoglu, porque sou fã da sua trilogia “Ovo”, “Leite”, “Mel”.  O último recebeu o título de “Um Doce Olhar”, no Brasil.  É de uma beleza ímpar, um drama intimamente ligado à natureza, que é mostrada num colorido brilhante.  Pois bem, GRÃO é outra coisa.  O outro lado dessa história.  É uma ficção científica, em preto e branco, que se passa no mundo da Terra Morta, após atravessar-se um muro tecnológico que a separa da Natureza Livre.  Um caos genético está em andamento, a destruição, avançada, e os caminhos ainda possíveis muito complicados de se trilhar.  Ou seja, o cineasta que celebra a natureza e a vida simples, nos outros filmes, se desespera pelo que o ser humano faz com ela e com a manipulação genética, em particular.  Diferente do que se poderia esperar dele, à primeira vista, mas muito bom também. 

SEM DATA, SEM ASSINATURA é um filme do Irã, que coloca um dilema moral que se diversifica, se transforma em outro.  E provoca o tempo todo o espectador, levantando a dúvida daquilo que seria mais relevante num caso que envolve um acidente de um carro com uma moto, um médico e sua mulher, também médica, patologistas forenses, a venda e consumo de carne velha e a morte de uma criança.  A sustentação da história só ocorre porque informações que poderiam ser perfeitamente compartilhadas não o são.  O que parece revelar a dificuldade de estabelecer relações de confiança, mesmo entre pessoas tão próximas, como marido e mulher, tanto na classe alta quanto nos extratos populares.  Uma questão iraniana, dos seres humanos, ou apenas um mote para o roteiro poder funcionar?  Um bom trabalho do diretor Vahid Jalivand, em seu primeiro longa.


UMA QUESTÃO PESSOAL



UMA QUESTÃO PESSOAL, dos irmãos Paolo e VittorioTaviani, da Itália, é um filme simples e bonito.  Passa-se no Piemonte, em 1943, envolvendo dois participantes da Resistência Italiana, na Segunda Guerra Mundial.  Eles se alistam e lutam contra os fascistas, mas têm em comum, além disso, o desejo por uma mulher, Fúlvia.  Estamos no clima de guerra, mas o filme não destaca o lado político dela.  Milton, em meio à guerra, procura por seu amigo e rival, Giorgio, que caiu nas mãos dos fascistas, mas suas razões são de ordem pessoal, como diz o título do filme.  É um trabalho para se curtir com calma, apreciando a beleza do lugar, a filmagem elegante, o desempenho do elenco.  Tem a chancela desses fabulosos irmãos cineastas, que sempre trabalharam juntos e assim continuam, Paolo, com 86 anos, e Vittorio, com 88.



quarta-feira, 25 de outubro de 2017

MAIS DESTAQUES DA 41ª. MOSTRA

                         
Antonio Carlos Egypto


THE SQUARE, da Suécia, vencedor do Palma de Ouro no Festival de Cannes, é dirigido por Ruben Östlund, de “A Força Maior”, 2014.  É, mais uma vez, um ótimo trabalho. O filme focaliza um personagem, curador de museu de arte contemporânea, que está cercado de ícones da modernidade e com eles convive.  Discute e brinca com essa arte de instalações para lá de questionáveis e seus significados fluidos.   Mas também esbarra na crise a toda hora, abordado por mendigos, ladrões, e se complica ao aceitar um vídeo promocional, que explodia uma menina de rua loira, sueca por excelência.
A questão principal, que é o foco do filme, diz respeito à alteridade.  Em defesa de interesses e bens pessoais, tomam-se medidas sem avaliar as consequências que podem trazer a outros.  Não só isso, mexe com resistências e as dificuldades de reparar danos em situações pouco conhecidas ou até então inexploradas.  Essa postura não aparece só na história individual do protagonista, ela fica evidente na sociedade, fechada, insensível, com medo de encarar o sofrimento e os pedidos de socorro alheios.
Em The Square, Östlund diversifica e amplia o foco da questão ética e das fraquezas humanas, alcançando a dimensão social do fenômeno. Dispersa a narrativa, mas alcança um nível maior de profundidade.  Além disso, nos brinda com lindas sequências, como a do protagonista imerso e se movendo numa montanha de sacos de lixo, visto do alto.  O ator Claes Bang e um elenco que rende bem dão vida a uma trama absolutamente moderna, bem humorada, que respira contemporaneidade e tem grande consistência.


24 FRAMES


24 FRAMES, de Abbas Kiarostami, Irã/França.  Uma câmara parada registra o que se passa, por uma janela, atrás de um vidro, dentro de um carro ou no espaço aberto.  São, em geral, lugares em que a natureza e os animais dão as cartas. Parece que nada vai acontecer, mas algo, por menor que seja, acontece. A neve, a chuva, o vento, o voo dos pássaros, ou eles bicando sua comida, cavalos em movimento, uma manada de vacas, alces, um passarinho que canta sem parar, posado numa pilha de madeira cortada, água, mar. Gente passando em frente a uma foto de pessoas, mirando a torre Eifel, é uma exceção.  E um quadro em que elementos dele ganham vida.  Tudo é belo, bem enquadrado e sonorizado.  Surge uma boa música, depois volta-se aos ruídos próprios dos animais, da água ou do vento.  O filme exige de nós algo que cada vez temos mais dificuldade de fazer: contemplar. Num mundo agitado em que queremos fazer várias coisas ao mesmo tempo, para dar conta de tudo, ganhar tempo, em que estamos sempre conectados, fica impossível parar para ver, observar, sentir, deixar fluir a percepção.  Um filme contemplativo como esse, hoje, é uma proposta revolucionária.  Infelizmente, Kiarostami já se foi, mas sua obra continua nos provocando e encantando.

O GOLFO, de Emre Yeksan, da Turquia, se concentra na figura de um jovem que parece distante de tudo e de si mesmo.  Lacônico e pouco reativo, faz lembrar a frase musical de Zeca Pagodinho: “Deixa a vida me levar, vida leva eu”.  Mas há um misterioso acidente ou ato terrorista, que ocorre no mar.  O cheiro se torna insuportável na cidade de Izmir, que tem casas de veraneio e recebe turistas. As pessoas fogem de lá, os sem-teto ocupam casas e praças. Mas tudo parece estar fora da ordem.  Uma alegoria dos problemas atuais do país?  Um trabalho que merece ser conferido.

UM JUDEU DEVE MORRER, de Jacob Berger, que faz parte do “foco Suíça”, é um filme que conta de forma tradicional uma história absurda.  Na pequena cidade suíça de Payenne, simpatizantes nazistas decidem matar um judeu como exemplo, procurando chamar a atenção de Adolf Hitler.  Isso em 1942, num país supostamente neutro.  O alvo é ninguém menos do que o personagem vivido pelo grande ator suíço, Bruno Ganz, que já viveu o próprio Hitler no cinema.  Boa produção, em econômicos 73 minutos, que dá conta do recado.


ZAMA


ZAMA , de Lucrécia Martel, da Argentina, é daqueles filmes que os cinéfilos não vão querer perder.  A diretora filma muito bem e faz trabalhos sérios e pesados.  Aqui o drama é histórico, remete à Coroa espanhola na América e a um oficial que espera ser removido dessas plagas por uma carta do rei, que nunca chega.  Esse é o ponto de partida para se abordar o descompromisso do colonizador com o país que domina ou, talvez, o de qualquer dirigente com seu próprio povo.  Também se discute o mito e o que o sustenta.  O contexto histórico e geográfico podia ser melhor caracterizado, é um pouco confuso acompanhar a narrativa, sem conhecer o livro que lhe deu origem. Mas não faltam boas sequências, uma bela fotografia e o bom desempenho dos atores.





segunda-feira, 23 de outubro de 2017

DESTAQUES DA MOSTRA 41



DESTAQUES  DA 41ª. MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA SP 

Antonio Carlos Egypto


O MOTORISTA DE TÁXI, de Jang Hoon, da Coreia do Sul, é um belo filme, com uma narrativa ágil e envolvente num tema político: a luta pela democracia em 1980 na cidade de Gwangju, que produziu uma revolta, sobretudo estudantil, violentamente reprimida pelas forças policiais e que foi escandalosamente manipulada pela mídia, na ditadura militar então vigente.  O filme evolui para a aventura e a ação, passa um pouco pela comédia e tem elementos sentimentais na sua bem resolvida trama. Está indicado pela Coreia para a disputa do Oscar de filme estrangeiro.
Mas não espere perfeição.  Há erros de continuidade, como o táxi que recebeu uma série de balas na lataria e que aparece recuperado em cena imediatamenbte posterior.  São pecadilhos que não comprometem o filme, que é empolgante e inteligente.


O MOTORISTA DE TÁXI


À SOMBRA DA ÁRVORE (ou DEBAIXO DA ÁRVORE), o filme islandês, que também é o indicado ao Oscar de filme estrangeiro pelo seu país, inspira-se no clássico curta de animação “Vizinhos” (1952), do canadense Norman MacLaren.  Quem se lembra dele? 
Aqui, a narrativa se concentra na disputa irracional e intolerante entre vizinhos, mas acrescida por uma separação de casal litigiosa, que complica as coisas.  O que pode a mente humana perturbada por incômodos produzir nas relações face-a-face?  No filme de Hafsteinn Gunnar Sigurdsson, as personagens femininas mostram mais desequilíbrios do que os homens.  As feministas podem não gostar disso, mas o filme funciona muito bem e os homens podem ser menos loucos, mas são fracos e incompetentes.

ESPLENDOR, o novo filme de Naomi Kawase, do Japão, tem a delicadeza e a afetividade que o seu cinema costuma apresentar e a capacidade de lidar com os conflitos de forma construtiva.  A perda progressiva da visão para um fotógrafo e as dificuldades que o trabalho de escrever versões de filmes para deficientes visuais envolve são o mote de um encontro renovador entre os dois personagens.  Muito terrno e bonito.

FELICITÉ, de Alain Gomis, nos leva ao Congo, uma cantora e sua bela música, que convivem com a pobreza e com a falta de atendimento digno à saúde que tornam dramática a situação, quando o filho dela sofre um acidente grave.  O filme conta essa história de forma fluida e esteticamente elaborada, mas a cópia exibida estava escura demais, dificultando o fruir dos detalhes, nas cenas noturnas.  Uma grande atriz protagoniza o longa de produção francesa, belga, senegalesa, alemã e libanesa.

HUMAN FLOW  -- Não existe lar se não há para onde ir, do multiartista chinês Ai Wei Wei, que também assina o cartaz da 41ª. Mostra, é uma ampla reportagem sobre o flagelo dos refugiados nos últimos tempos.  O documentário, de produção alemã, percorreu 23 países em busca de mostrar as pessoas e os campos de refugiados e tudo o que envolve essa grande tragédia da atualidade.  Basta dizer que são 65 milhões de pessoas no mundo que não têm um lar ou como voltar a ele.  Refugiados são as pessoas que fogem da guerra, da fome, da miséria, da perseguição política e religiosa.  Gente que não tem escolha e está sendo recebida em fronteiras fechadas, muros e cercas de arame farpado.
O filme teve que editar um vastíssimio material, o que o obrigou a ter de passar rápido por cada situação e não conseguiu encontrar um personagem ou símbolo que alinhavasse a tragédia relatada. Quem costura um pouco os capítulos é o próprio diretor, que interage com seu objeto e é uma figura sensível e humanizadora.


AI WEI WEI no cinema do Shopping Frei Caneca


TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME, o filme estadunidense, de Martin McDonagh, tem uma história fascinante e uma personagem feminina forte e decidida.  Ela cobra das autoridades policiais locais pelo assassinato da filha.  E o faz de modo competente e original, o que cria conflitos saborosos por lá.  O policial alvo das cobranças é um personagem muito interessante, também.  Frances McDormand e Woody Harrelson são os principais destaques de um filme que flui muito bem e mantém o suspense a que se propõe.


O JOVEM KARL MARX é um filme dirigido por Raoul Peck, que esteve há pouco nos nossos cinemas, com “Eu Nâo Sou Seu Negro”.  Aqui, ele se debruça sobre a vida e a obra de Karl Marx (1818-1883), que pode ser considerado, ao lado de Sigmund Freud (1856-1939), a mais importante referência das ciências humanas dos séculos XIX e XX.  Trata também da relação que Marx estabeleceu com seu parceiro de estudos e militância política, Friedrich Engels (1820-1895), de grande peso e importância, de 1843 a 1848, anos de juventude que culminaram nas revoluções europeias e no famoso manifesto do partido comunista.  O filme adota uma narrativa clássica muito apropriada ao seu objetivo, que é também didático e informativo.  E o resultado é ótimo. Correto na história e no estabelecimento dos conceitos que nasciam para influenciar o mundo até os dias de hoje.  Produção franco-germânica.



terça-feira, 17 de outubro de 2017

DICAS DE FILMES DA 41ª. MOSTRA


Antonio Carlos Egypto


Dentre os filmes que constam da programação da 41ª. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, que já pude ver, destaco alguns que merecem atenção.

FEIO (Ugly), da Ucrânia, é um filme que quem gosta de cinema certamente vai apreciar.  Plasticamente belo, explora bem os espaços, a luz, as fortes sensações e sentimentos que procura mostrar.  Não constrói uma narrativa linear, nem deixa tudo claro e compreensível.  Mas encanta pela filmagem, pela estética.  O diretor, Jiri Rechinsky, está em seu segundo longa, primeiro em ficção.  Nascido no Turcomenistão, criado na Ucrânia e vivendo na Áustria, é um nome para acompanhar.  Começa muito bem.


FEIO

SCARY MOTHER, da Geórgia, radicaliza o dilema de uma mulher com talento para a escrita, que terá de escolher entre desenvolver esse talento ou se apequenar numa vida familiar que a reprime.  Os caminhos são difíceis, dentro e fora de casa.  O mercado não é receptivo em tempos de crise.  Só mesmo uma grande paixão para algo acontecer.  A direção de Ana Urushadze, em seu primeiro longa, é competente em revelar o conflito feminino básico entre não só a vida familiar e a profissional, mas entre a acomodação e a transgressão, com tudo que acompanha as decisões radicais.

UM CINEMA EM CONCRETO, documentário argentino, de Luz Ruciello, em seu primeiro longa, dialoga com um dos destaques brasileiros do último É Tudo Verdade: o filme “Cine São Paulo”.  Aqui também descobre-se um personagem apaixonado, sem medida, pelo cinema.  Só que, no caso, pela construção do cinema como espaço de sonho.  E haja persistência para viabilizar concretamente isso!


UM CINEMA EM CONCRETO


JERICÓ, O INFINITO VOO DOS DIAS, de Catalina Mesa, da Colômbia, em seu segundo longa, é um documentário que retrata, com sensibilidade e respeito, a vida de várias mulheres do povoado colombiano de Jericó, seus pensamentos, histórias de vida, suas crenças, sua religiosidade marcante, seu humor e o conhecimento que desenvolvem num ambiente bastante limitado e na pobreza. 

O DIA DEPOIS, da Coreia do Sul, é mais um filme de Hang-Sang-Soo, talvez o mais produtivo cineasta autoral em atividade no mundo.  É um filme atrás do outro (ainda está em cartaz “Na Praia, À Noite, Sozinha”).  São filmes simples, geralmente com personagens conversando em torno da mesa, comendo e, principalmente, bebendo, resolvendo conflitos.  Portanto, de realização rápida.  Só que ele faz muito e faz bem.  Ele sempre encontra um clima apropriado para desenvolver suas histórias e um elenco que convence, ao interpretar gente real, com quem cruzamos amiúde por aí.  Esta narrativa de infidelidade e engano é muito boa.


1945

1945, da Hungria, dirigido por Ferenc Tórók, nos remete a um povoado húngaro que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, se sente ameçado em seu poder local e na posse de bens, pela volta dos judeus sobreviventes da guerra.  A filmagem, muito boa, em preto e branco, remete ao medo, à ganância, ao conflito ético, enfatizando que é o que está na cabeça das pessoas o que conta, não a percepção da realidade objetiva.

CUATREROS, de Albertina Carri, da Argentina, constrói uma narrativa que nos mostra o filme sendo realizado, a partir da descoberta de textos e imagens relacionados ao trabalho do sociólogo Roberto Carri, pai da diretora.  Uma profusão de informações é apresentada verbalmente – verborragicamente, eu diria – enquanto a tela, frequentemente, está dividida em três ou quatro imagens distintas.  Impossível captar tudo.  Ainda assim, é um trabalho documental relevante, que teria ganhado muito com uma edição mais apropriada.



sexta-feira, 13 de outubro de 2017

DETROIT EM REBELIÃO


Antonio Carlos Egypto




DETROIT EM REBELIÃO (Detroit).  Estados Unidos, 2017.  Direção: Kathryn Bigelow.  Com John Boyega, Willl Poulter, Algee Smith, Jacob Latimore, Hannah Murray.  143 min.


Quem assistiu a “Guerra ao Terror” (2008) e a “A Hora Mais Escura” (2012) sabe bem o que esperar da diretora Kathryn Bigelow.  Ela faz filmes políticos, muito fortes, de denúncia,sem aliviar na forma de relatar os acontecimentos.  Ela se interessa pela história norte-americana recente e parece ter muita urgência em fazer o público refletir sobre algumas questões pendentes.

“Detroit em Rebelião”, seu atual trabalho, se debruça sobre a tensão racial que tomou conta da cidade de Detroit, a mais populosa do estado de Michigan, em 1967.  Ela procura mostrar que o barril de pólvora que se incendeia nesses momentos retrata uma guerra sem fim que os Estados Unidos não conseguem encarar e resolver.  Pelo contrário, ciclicamente, a situação se agrava.

O filme toma posição clara e expressa de apoio à causa negra, durante todo o tempo, de forma firme e corajosa.  Sem dar margem a nenhuma dúvida.  O que, talvez, até prejudique a reflexão que ela pretende.  Porque ela dá o prato pronto, incontestável.






A abordagem dos fatos relatados no filme é tão marcante e incisiva que se torna quase insuportável.  As cenas de confrontos de rua são agitadas, tensas como a câmera que as capta.  O tratamento que uma polícia quase inteiramente branca dá à população negra de uma região conflagrada é de exasperar os ânimos de qualquer humanista ou cidadão de convicções democráticas.

Para acentuar o absurdo do tratamento policial e o desrespeito às pessoas, o filme se estende durante muito tempo, para mostrar o que acontece, passo a passo, repetidamente.  É revoltante, inaceitável.  Já sabíamos disso, tínhamos entendido.  Mas viver emocionalmente cada momento nos obriga a entrar na pele da população negra, tão estupidamente discriminada. E que o ótimo elenco negro, que sofre diante de nós, reforça enormemente, assim como os atores brancos em seus desempenhos agressivos.

Os julgamentos que ocorrem depois apenas reafirmam a desigualdade e a ausência de equilíbrio de uma justiça também branca.  Nesse ponto, a situação toma ares civilizados, mas nada muda, de fato.  As instituições estão aí para garantir a desigualdade e o preconceito.  Essa é a América, guardiã da democracia e da liberdade, que tanto se apregoa?  Alguma coisa apodreceu nos intestinos dessa nação tão poderosa.  E não é de hoje, como nos mostra Kathryn Bigelow em seu forte filme-denúncia.





quarta-feira, 11 de outubro de 2017

O QUE VEM AÍ NA 41ª. MOSTRA

                           
Antonio Carlos Egypto


Está chegando a hora.  O evento cinematográfico mais importante do ano, a 41ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, começa dia 19 de outubro e vai até 01 de novembro, sem contar a repescagem, que estende as sessões por mais uma semana, geralmente, aí somente no Cinesesc.  Durante o período oficial da Mostra, 30 espaços acolherão os filmes, entre cinemas, centros culturais e museus.  Serão 394 títulos, incluindo 30 curtas-metragens e os filmes das retrospectivas.

Só de retrospectivas de grandes diretores serão 3.  A primeira, dedicada ao talentoso diretor Alain Tanner, integra  o  Foco Suíça , em que 32 longas recentes da produção do país serão exibidos.  Agnès Varda será homenageada com o prêmio  Humanidade  e terá 11 de seus filmes incluídos na 41ª. Mostra.  O trabalho da cineasta é de excepcional qualidade.  É para não perder essas sessões.  O diretor Paul Vecchiali também ganha retrospectiva e recebe o prêmio Leon Cakoff.  É um trabalho provocador, que merece atenção.






Um belo programa retrô será acompanhar a comédia muda “O Homem Mosca”,  de 1923, protagonizada por Harold  LLoyd, em que ele se pendura no relógio no alto de um prédio, que receberá o acompanhamento ao vivo da orquestra Jazz Sinfônica, no Auditório Ibirapuera.  Um luxo!

O cinema brasileiro terá presença farta na Mostra e pela primeira vez se entregará o prêmio Petrobrás R$100.000,00 para o melhor documentário e R$200.000,00 para a melhor ficção, com júri específico para isso.  Não faltará uma boa safra de filmes latino-americanos, como de hábito se constata na Mostra.  As últimas edições têm trazido filmes entusiasmantes pela qualidade.

Desde que nasceu, o foco da Mostra é o cinema de todo o mundo e a apresentação de novos talentos, cineastas que concorrem ao prêmio principal do festival, desde que estejam em seu primeiro, segundo ou terceiro longas.  E o público vota nos melhores, que serão analisados pelo júri oficial.

Os diretores consagrados, os premiados de festivais internacionais, os indicados de seus países ao Oscar de filme estrangeiro, compõem a Perspectiva Internacional, aqueles filmes que acabam provocando uma grande procura e longas filas em algumas sessões.   Mas quem pode resistir?

Por falar em filas, fazer assinaturas integrais, de 20 ou de 40 ingressos e retirá-los com antecedência na Central da Mostra, no Conjunto Nacional, na avenida Paulista, viabiliza  garantir lugar para as sessões, sobretudo as mais badaladas. As assinaturas estarão à venda na Central a partir de 14 de outubro.


O cartaz da 41ª. Mostra foi concebido pelo artista chinês Ai Weiwei.  Seu filme “Human Flow – não existe lar se não há para onde ir”, que abre o evento, já identifica um dos principais focos que podemos esperar na temática cinematográfica atual: a grave crise mundial dos refugiados.  Além dela, as questões da diversidade, de gênero e do meio ambiente, devem se destacar.  É o cinema pulsando em sintonia com o mundo.



segunda-feira, 9 de outubro de 2017

CHURCHILL


Antonio Carlos Egypto






CHURCHILL (Churchill).  Reino Unido, 2017.  Direção: Jonathan Teplitzky.  Com Brian Cox, Miranda Richardson, John Slatery, Ella Purnell.  106 min.


A produção inglesa “Churchill” não é uma cinebiografia que trate da vida desse líder britânico, cujo nome está indelevelmente marcado na história do século XX e das duas grandes guerras.  É o retrato de um momento específico e decisivo de sua vida política, em que ele estaria entre a decadência e a glória.

Esse período é o que se situa nos seis dias que antecederam a operação da Segunda Guerra Mundial, conhecida como o Dia D, em junho de 1944, em que as forças aliadas organizaram um enorme exército para recuperar o território europeu ocupado pelos nazistas e que seria um passo, arriscado mas definitivo, para a vitória final no conflito mundial.

A figura de Winston Churchill que o filme mostra é francamente desfavorável ao personagem.  Ele aparece velho, alquebrado, resistente e obcecado pelo massacre de Galípoli, na Primeira Guerra Mundial, em 1915, sem querer repetir o erro que levou centenas de milhares de soldados à morte. Preocupado com a humilhação política e o fracasso militar que já havia experimentado, surge como entrave inicial à invasão da Normandia, tendo de ser convencido por Eisenhower, e outros, de que esse passo decisivo tinha de ser feito. E, ainda, tendo que ser submetido à autoridade do rei.

Não há dúvida de que Brian Cox compõe o personagem Churchill, nessas circunstâncias, com raro talento.  A esposa, Clemmie, vivida por Miranda Richardson, está igualmente muito bem interpretada.  Ela, mostrada como pessoa forte, equilibrada, com raciocínio claro e papel determinante na situação.  Já o grande líder britânico está consumido por seus medos e obsessões, num momento deprimente da vida, quando mais se precisaria do seu claro discernimento.






Soa um pouco estranha a fixação na batalha de Galípoli da Primeira Guerra, quando a Segunda já se desenhava como amplamente vitoriosa.  Claro que a preocupação com a repetição de um possível massacre se justificava, mas a obsessão pelo passado, não.  Afinal, para chegar a esse momento da guerra, muitos anos se passaram, desde 1939, e o impacto dos embates do presente era grande demais para ficar em segundo plano.

“Churchill”, ao trabalhar um momento marcante da história por meio da realidade psíquica de um de seus personagens principais, talvez busque uma verdade, no plano interpessoal, que não tem muita cabida.  Para uma questão política dessa dimensão, esse enfoque pouco ou nada acrescenta.


Um drama individual se sobrepõe ao drama da guerra, que estava definindo os destinos da humanidade.  E, ainda que o personagem não pudesse saber que a guerra estava em seus últimos estertores, não é muito crível que Churchill não pudesse entender o sentido coletivo das decisões, numa hora dessas.  Assim, uma boa produção cinematográfica que, embora convencional na forma, poderia alcançar voos muito maiores, perde a força.